Homem esteve preso a condições degradantes
durante quase uma década. Flagrado com armas e acusado de ameaças,
fazendeiro nega superexploração
Por Guilherme Zocchio | Categoria(s): Notícias
Durante quase 10 de seus 49 anos de vida,
Joaquim Eduardo* permaneceu alojado nos fundos de uma propriedade rural,
em Dourados, no Mato Grosso do Sul (MS). Isolado, ele não dispunha, por
lá, de água potável ou qualquer outra forma de abastecimento. Para
matar a sede, tomar banho ou realizar necessidades, nesse período,
deveria caminhar até um açude próximo, desde que o poço caipira que
cavara quando começou a trabalhar no local, no final de 2003, secou. Os
mantimentos, a cada dez ou quinze dias, eram trazidos pelo empregador,
dono de três fazendas no distrito de Itahum. Basicamente, arroz,
macarrão, um pouco de carne e feijão compunham a dieta do trabalhador.
Janela na cozinha de alojamento que, segundo inspeção, era usado como residência (Fotos: MPT)
Fiscais do Ministério Público do Trabalho (MPT) e do Ministério do
Trabalho e Emprego (MTE), junto de agentes da Polícia Federal (PF) e do
Departamento de Operações de Fronteira (DOF-MS) verificaram a situação à
qual viveu submetido o trabalhador, de novembro de 2003 até o último
dia 23 de abril. Após uma denúncia anônima, ele foi resgatado.
“Recebemos a denúncia no mesmo dia. Ficamos preocupados com o teor, e,
logo à tarde, já estávamos na região para apurar o ocorrido”, explica o
procurador do MPT Jeferson Pereira.
Em condições análogas às de um escravo, conforme constatou a
fiscalização, Joaquim havia sido contratado para trabalhar como capataz
de Paulo Afonso Lima Lange, pecuarista dono de 1.500 cabeças de gado,
empresário criador de cavalos da raça crioulo e proprietário de um
conjunto de três fazendas na região que carregam a alcunha de São
Lourenço. Era o único empregado registrado no empreendimento, de acordo
com os fiscais. A promessa original que recebera era a de condições
dignas de serviço e um salário mínimo, capaz de ajudar no sustento da
família, esposa e duas crianças que nasceram no decorrer desses quase
dez anos de escravidão. Mesmo com carteira assinada e o recolhimento
regular para o FGTS, sua remuneração, porém, mal passava de R$300,00
mensais.
“Apesar de ter sido contratado e estar registrado como capataz, ele
fazia de tudo um pouco. Cuidava do gado, batia e preparava a ração dos
animais”, descreve a auditora fiscal do MTE que participou da
fiscalização, Patrícia Verdini. Segundo ela apurou, além de estar
sujeito a um ambiente degradante e alojado em local que caracterizava
isolamento geográfico, Joaquim cumpria jornadas que se estendiam por
períodos superiores a 12 horas diárias e não recebia os devidos
equipamentos para a sua proteção durante o serviço, os chamados EPIs.
“Eu cuidava das três fazendas. Fazia a cerca, mexia com o trator.
Fazia de tudo. Era o único peão. Pegava de madrugada e ia até oito horas
da noite. Direto, direto, direto. Sem feriado. E até de Sexta-feira
Santa”, lembra o trabalhador sobre as circunstâncias de seu serviço, em
entrevista à Repórter Brasil.
Pela jornada de serviço excessiva, que não lhe permitia o zelo
necessário à família, e ausência de condições dignas de habitação e
higiene, Joaquim perdeu, depois de três anos na fazenda, a guarda das
duas filhas, que passaram, por sua vez, a morar com a avó em Dourados. A
esposa, igualmente sujeita à situação degradante, desenvolveu problemas
psicológicos e, pela relação turbulenta e problemática que os dois
começaram a levar, também deixou o local. “Sete anos passei sem ver
minha mulher e meus filhos. E chorava de desgosto. Ficava sem ninguém,
sem ter os filhos, sem ter água, sem ter nada”, conta o trabalhador. Os
únicos contatos que tinha, conforme explica, eram com seu empregador ou
com um “rapazinho” que dizia vim lhe visitar com alguma regularidade.
“Só tinha contato com o patrão. Nem com o vigia ele deixava conversar.
De vez em quando, conversava com um ‘rapazinho’ que morava lá perto”.
“Ele era encarregado de serviços gerais e contratado como capataz,
mas não tinha como exercer essa função”, justifica, por um lado, o
fazendeiro. Paulo Afonso alega que Joaquim sofria de alcoolismo. Por
outro lado, o pecuarista afirma, então, que tentou aproximar o
trabalhador de sua família, como modo de ajudá-lo a superar o problema
com a bebida. “A gente foi tentando melhorar a cabeça do indivíduo,
porque ele era meu funcionário. Você vai levando, tenta levar o rapaz
para um bom caminho, mas tem gente que não se ajuda”, diz.
Armas e ameaças
De acordo com os fiscais, no entanto, foi possível constatar várias
situações em que houve algum tipo de ameaça do latifundiário sobre
Joaquim. “Não eram raras as vezes em que o empregador dizia que para
matar ele [o trabalhador] e um boi era a mesma coisa”, aponta a auditora
do MTE Patrícia Verdini. Na ocasião do flagrante de trabalho escravo,
os agentes da Polícia Federal ainda encontraram uma pistola calibre 357,
uma espingarda calibre 32, seis tipos de munição diferente e o
silenciador de um revólver, todos os materiais sob posse do pecuarista,
que não dispunha de autorização judicial para tê-los.
Interior da casa onde a fiscalização constatou que Joaquim viveu durante seus anos de escravidão
Paulo Afonso foi preso por porte ilegal de armas na oportunidade da
inspeção trabalhista. Dois dias depois, conseguiu liberdade provisória,
mediante o pagamento de fiança de oito salários mínimos. No momento em
que conversou com a Repórter Brasil já estava em liberdade. As munições e os outros armamentos permanecem apreendidos pelo DOF-MS.
O fazendeiro costumava caminhar armado e dar tiros para o alto
enquanto estava na área de suas propriedades, segundo verificou a
fiscalização. Para o Procurador Jeferson Pereira, as ameaças e o fato de
o empregador andar com armas à mão provocavam em Joaquim “um temor
reverencial pelo proprietário”. “Ele se sentia coagido a continuar
trabalhando para o produtor rural. O trabalhador ficava com medo de
abandonar o serviço, porque havia coação moral pela presença ostensiva
de armas na fazenda”, define. Essa situação pode caracterizar o quadro
de “trabalho forçado”, uma das tipificações de trabalho escravo
contemporâneo prevista no
Artigo 149 do Código Penal.
“De vez em quando ele falava: você não pode sair de mim, não vai
embora não”, relembra Joaquim das vezes em que perguntou a seu patrão a
respeito de uma possível mudança de emprego. O resgatado também expõe
que, sem importar hora, data ou local, sentia-se constantemente vigiado.
“Ele sabia todos os meus passos. O telefone tocava dia e noite, atrás
de mim. Nunca cheguei a procurar outro trabalho. Eu tinha medo de sair”,
conta. Questionado por esta reportagem se nunca sentiu vontade ou se
alguma vez tentou fugir da fazenda, ele responde: “cheguei”. “Mas tinha
medo de ele [o pecuarista] fazer alguma coisa comigo lá no fundo da
fazenda. Então pensei: quem sabe deus ajuda. E resolvi ficar”.
Por sua vez, o empregador alega que uma vez tentou despedir seu
empregado e, nas suas palavras, reitera que Joaquim “implorou para não
ir embora”. O pecuarista diz que mantinha uma relação amistosa com seu
funcionário e que até seu filho tratava-o “como um amigo”.
Sem água, banheiro não apresentava condições de higiene
Rescisão com dinheiro da JBS
O fim do processo de resgate do trabalhador, pelo encerramento da
rescisão contratual, aconteceu na última quarta-feira (15), com a
entrega das verbas às quais tinha direito devido ao não recebimento de
parcelas de seu salário, nesses quase 10 anos em que se manteve na
fazenda de Paulo Afonso. Pelo valor da quantia e por problemas no
Cadastro de Pessoa Física (CPF) de Joaquim, o procedimento rescisório
não foi encerrado antes da última semana. Nesse período, os procuradores
do MPT responsáveis pelo caso, bem como os auditores fiscais do MTE,
acompanharam todo o desenrolar. Ao todo, foram lavrados sete autos de
infração.
O resgatado recebeu R$25.360,97, pagos em juízo pelo grupo JBS devido
à venda de 20 cabeças de gado bovino da criação do fazendeiro para a
empresa. O dinheiro a priori pago a Paulo Afonso pela venda dos animais
foi usado para custear as verbas rescisórias. Em posicionamento à
reportagem, a companhia assume que havia comprado esse lote porque nunca
constatou o histórico do uso de mão de obra análoga à de escravo na
produção do pecuarista.
“Como o nome do fazendeiro não consta na ‘lista suja’ do trabalho
escravo, a JBS de fato recebeu o lote de 20 bois fornecidos pelo
produtor. Diante do ocorrido, a empresa pagou o valor em juízo e deixou a
cargo dos órgãos responsáveis a maneira pela qual o dinheiro será
encaminhado”, afirma em nota a empresa. A “lista suja” é o nome pelo
qual é conhecida a relação de empresas e pessoas flagradas empregando
escravos, mantida pelo Ministério do Trabalho e Emprego e pela
Secretaria Especial dos Direitos Humanos. A JBS é signatária do Pacto
Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, grupo que se compromete a
não comprar de quem está no cadastro, mas foi
suspensa em 2012.
Carne que viria do abate de animais pelo próprio trabalhador
Joaquim já conseguiu um novo emprego, sobre o qual ele próprio diz
que “está muito feliz”. Trabalha agora regularmente, e a pouco mais de
800 metros da sua casa, onde voltou a viver com a esposa e as filhas, em
Dourados, depois do período que passaram separados. A reportagem
perguntou-lhe se, alguma vez, já havia ouvido falar em trabalho escravo.
A resposta foi afirmativa. “Já tinha. Sempre que assistia à televisão
toda noite, via o cara pesando. Eu falava que uma hora o povo vai
denunciar esse patrão. Pensava: uma hora esse velho tá lascado, e é
preso ainda!”.
Em entrevista, o pecuarista minimizou a situação a que o trabalhador
estava submetido. Apesar disso, firmou Termo de Ajustamento de Conduta
(TAC) com o MPT, no qual se compromete a observar exigências
trabalhistas, não reduzir pessoas à escravidão e de bancar uma campanha
publicitária para a prevenção do aliciamento de pessoas ao trabalho
escravo. No caso de não cumprimento deverá pagar multa a partir de R$ 10
mil. “Eu me criei hasteando a bandeira e cantando o hino nacional. Na
minha família não tem bandido, nem escravagista. Você tenta ajudar o
indivíduo, torná-lo uma boa pessoa, mas não dá”, encerra.
*o nome foi trocado para preservar a identidade da vítima