Espero que alguns de meus amigos não fiquem chateados pelo fato de estar retomando este assunto. Não é nada pessoal. Todo mundo é livre para adotar o nome de família do companheiro após o casamento, mas particularmente tenho constatado – com incontida felicidade – que cresce o número de mulheres que mantém seu nome com a troca de alianças e achei que vale a pena discutir o tema.
O assunto não é bobo, pois é simbólico (e, portanto, fundamental) e faz parte de nosso cotidiano. Mostra como o respeito à igualdade de direitos está difundido na sociedade, fazendo frente à aceitação de certas práticas para cumprir a tradição – sem esquecer que tradição é algo construído, muitas vezes pela classe (ou gênero) dominante ao longo do tempo. Construído de forma ardilosa, inclusive, para fazer com que o grupo dominado defenda a dominação.
Em muitos casais, há liberdade para discutir o tema e chegar a uma decisão. Para esses, parabéns. Em outros, a decisão já está tomada há gerações.
Se não me falha a memória, desde a Constituição de 1988 é possível optar pela não-colocação do nome do parceiro, o que foi ratificado com as mudanças no Código Civil, em 2002. Tem gente que desconhece isso e cita livros que fazem parte do ordenamento jurídico brasileiro, como a Bíblia, para justificar a mudança de alcunha. Como se Deus fosse dono de cartório.
Na época em que tratei deste tema pela primeira vez neste blog, houve comentaristas que defenderam que a mulher deveria ser obrigada a receber o nome do marido por uma questão de defesa da honra do casal (ah, esses maravilhosos homens inseguros…), por uma questão de comodidade (pois, como todos sabemos, é super prático ser conhecida por um nome antes e – plim! – de repente, não mais) ou porque sempre foi assim (isso! legalizemos a corrupção, pois é mais fácil aceitá-la que combatê-la).
Tempos atrás, o juiz Edilson Rumbelsperger Rodrigues, havia proferido uma sentença que expressa bem esse espírito de que homens e mulheres têm seus lugares demarcados. Em um dos trechos ele diz: “Ora, a desgraça humana começou no Éden: por causa da mulher, todos nós sabemos, mas também em virtude da ingenuidade, da tolice e da fragilidade emocional do homem (…) O mundo é masculino! A idéia que temos de Deus é masculina! Jesus foi homem!” E ao criticar a Lei Maria da Penha, contra a violência doméstica, disse: “A vingar esse conjunto de regras diabólicas, a família estará em perigo, como inclusive já está: desfacelada, os filhos sem regras, porque sem pais; o homem subjugado”. Afe.
O pior não é verificar que representantes do Estado podem ser preconceituosos, estúpidos, machistas ou ignorantes no trato com a vida alheia. O problema é saber que, infelizmente, essa visão rasa reflete um naco da sociedade brasileira formado por ricos e pobres, letrados ou não. Não é uma questão de educação pura e simples. É consciência. E isso não se aprende na escola, nem é reserva moral passada de pai para filho, mas sim na vivência comum, na tentativa do conhecimento do outro, na busca por tolerar as diferenças.
É mais fácil atestar que somos frutos de algo, determinados pelo passado, do que tentar romper com uma inércia que mantém cidadãos de primeira classe (homens, ricos, brancos, heterossexuais) e segunda classe (mulheres, pobres, negras e índias, homossexuais).
Gonçalves Dias estava errado no I-Juca Pirama: à pinóia com o “em tudo o rito se cumpra”. Joguemos a tradição no lixo! Desafio aos homens que ainda forçam, por pressão física ou chantagens emocionais, suas parceiras a mudar os documentos que adotem também o nome familiar delas. Uma troca justa. Afinal de contas, não é um nome, um pedaço de metal redondo ou uma benção em um templo que vai garantir a felicidade na vida a dois. E sim a capacidade de conversar, respeitar e somar ao invés de substituir e dividir.
É claro que tudo isso também depende da ação individual de cada um e como respondemos à correnteza que nos empurra para repetirmos os erros do passado. O fato é que a opressão adota diferentes caras. Muitas vezes travestidas de um simples costume.
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