Em Santa Inês (MA), fazendeiro mantinha
pequeno zoológico com bichos bem tratados, e criação de gado com 12
empregados em situação análoga à de escravo; processo trabalhista pode
chegar a R$3 milhões
Por Guilherme Zocchio*
|
A zebra Vitória em frente à sede da fazenda (Fotos: SRTE/MA) |
Vitória
é uma zebra rara: vive entre pessoas e tem acesso livre à casa do seu
dono, o fazendeiro Francisco Gil Alencar. Ele é proprietário de um
mini-zoológico em Santa Inês (MA) cujo nome lhe presta uma homenagem: o
"Gilrassic Park". Além de Vitória, o parque conta com 900 outros bichos
de 100 espécies diferentes, principalmente aves e animais silvestres,
que recebem acompanhamento especializado de um zootecnista.
A
pouco mais de cinco quilômetros do Gilrassic Park, na mesma propriedade,
a situação de 12 empregados de Francisco Gil era bem distinta: eles
foram resgatados de condições análogas às de escravo pelo grupo móvel de
fiscalização da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego do
Maranhão (SRTE/MA), em inspeção no fim de março deste ano. A vistoria
contou ainda com membros do Ministério Público do Trabalho (MPT) e da
Polícia Rodoviária Federal (PRF).
Os libertados trabalhavam sem
carteira assinada ou equipamentos de proteção individual (EPIs), fazendo
o roçado manual do pasto dos bois da Fazenda Coronel Gil Alencar, onde
fica o Gilrassic Park, em condições absolutamente subumanas e
degradantes.
Segundo a SRTE/MA, o alojamento dos trabalhadores
ficava no meio do mato, em espaço geograficamente isolado e sem meio de
transporte disponível. Para chegar ao grupo de 12 escravos, a equipe
percorreu uma longa trilha a pé a partir do quilômetro 30 da rodovia
BR-222, através de um matagal e de uma estrada alagada. Eles vasculharam
um extenso terreno de pastagem por cerca de duas horas até encontrar o
barraco onde estavam os empregados, nas margens de um igarapé.
|
Alojamento de estrutura frágil onde trabalhadores dormiam amontoados em redes |
Os
trabalhadores dormiam no mesmo terreno da pastagem dos bois. O
alojamento tinha somente a cobertura de uma lona preta e alguns maços de
palha, sem paredes laterais ou qualquer tipo de proteção contra animais
peçonhentos, chuva e outras intempéries. Ainda não havia nas redondezas
lugar adequado para as necessidades fisiológicas de um ser humano.
Dieta dos bichos X Dieta dos homensEnquanto
os animais de Francisco Gil recebiam ração balanceada e supervisão
nutricional, os empregados sequer tinham proteína de carne em sua dieta.
“Eles estavam cozinhando de forma precária e irregular. A alimentação
era baseada no carboidrato, só de arroz e feijão”, disse a auditora
fiscal do trabalho responsável por coordenar a inspeção, Márcia Albernaz
Miranda, à
Repórter Brasil.
|
|
|
Alimentação separada para os animais |
Todo
dia pela manhã, por volta das 6 horas, o grupo de trabalhadores recebia
café e uma massa de farinha de milho cozida pelo “gato”, supervisor dos
empregados. Alguns deles comentaram com os auditores que preferiam
tomar só o café e trabalhar com fome até o almoço, tão ruim era a
mistura. Por volta das 11h, eles faziam uma pausa no serviço para comer
arroz e feijão – às vezes, só um ou outro. No final da tarde, depois de
um dia de trabalho sob o sol maranhense, recebiam mais uma porção da
mesma comida.
A única fonte de água a que o grupo tinha acesso
era proveniente do pequeno igarapé em torno do alojamento, onde também
bebia, defecava e urinava o gado bovino. O líquido, de coloração amarela
e impróprio para o consumo, era usado pelos trabalhadores para beber,
cozinhar e para higiene pessoal.
Na sede da propriedade, a ração
dos animais do Gilrassic Park é armazenada em depósitos com regulação
térmica e, depois de receber um complemento de frutas e verduras
frescas, servida em comedouros higienizados.
“Os animais viviam
melhor que os empregados da fazenda de gado”, avalia a coordenadora da
inspeção. “Aqui no Maranhão, a gente não costuma ver um zoológico com
toda essa estrutura”, completa.
MPT processa fazendeiroA
procuradora do MPT que acompanhou a fiscalização preferiu não firmar um
Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o fazendeiro. Christiane
Nogueira, membro da procuradoria do trabalho da 16ª região (PRT-16),
resolveu mover uma ação civil pública postulando danos morais coletivos
diante da dimensão do caso.
|
|
|
Trabalhadores armazenavam mantimentos em condições precárias |
A
ação foi protocolada na última quarta-feira (26) na vara do trabalho de
Santa Inês (MA), do Tribunal Regional do Trabalho da 16ª região
(TRT-16). A disparidade entre a situação dos 12 empregados e a dos
animais do mini-zoológico é um dos pontos destacados pelo documento.
O
MPT pede indenização por danos morais coletivos de R$ 3 milhões, que
devem ser enviados a entidades e projetos assistenciais ou ao Fundo de
Amparo ao Trabalhador (FAT) do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).
No
processo a PRT-16 pede ainda que o empregador regularize as condições
na fazenda que levaram aos 26 autos de infração lavrados pela SRTE/MA.
“Gato” só conhecia o patrão pelo nomeEntre
o grupo de 12 empregados libertados estava “Zé Pretinho”, o “gato”
responsável por delegar tarefas e pelo aliciamento dos outros 11
escravos. Ele trabalhava em períodos descontínuos para a fazenda de
Francisco Gil há 10 anos, mas disse aos fiscais da SRTE/MA que em todo
esse tempo nunca encontrou o patrão pessoalmente.
“Zé Pretinho”
recebia um salário um pouco maior – em torno de R$ 12 por linha de
trabalho, enquanto os outros recebiam R$10 – mas, como os demais,
costumava receber o pagamento atrasado ou com descontos. As ferramentas
para o trabalho eram compradas pelos próprios empregados, que, com o
pagamento atrasado e insuficiente, somavam dívidas com o empregador.
A
renda mensal de todos ficava abaixo de um salário mínimo. “Mesmo tendo o
cargo de supervisor, não dá para dizer que Zé Pretinho estava em uma
situação de vantagem frente aos outros trabalhadores”, afirma Márcia.
|
|
|
Harpia, macaco-prego e arara - animais da coleção de Francisco Gil |
O
“gato” aliciava os trabalhadores, que viviam próximos da casa de sua
família, nas imediações do município de Santa Inês (MA). Uma vez por
ano, Zé Pretinho reunia conhecidos da vizinhança para trabalhar com ele
no roço manual do pasto da fazenda Coronel Gil Alencar.
Depois do
resgate, a SRTE/MA expediu as carteiras de trabalho dos empregados e os
encaminhou a um alojamento apropriado, até que a situação estivesse
devidamente regularizada. No dia 31 de março, o grupo recebeu as guias
de seguro-desemprego a que tinha direito. O empregador arcou com um
custo em torno de R$ 39 mil pela rescisão contratual com os 12
funcionários.
A
Repórter Brasil procurou o
fazendeiro Francisco Gil para comentar o caso, mas ele não estava na
propriedade. Uma funcionária do zoológico disse que passaria o recado a
Francisco Gil, mas até a publicação desta matéria, ele não havia entrado
em contato.
Questionado sobre a regularidade da posse de animais
silvestres, o supervisor do escritório do Instituto Brasileiro do Meio
Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) em Santa Inês (MA),
José Alfredo Carvalho Santos Filho, disse à
Repórter Brasil
que “todos os animais do Gilrassic Park são registrados”. “Todo fim de
ano, o Francisco Gil apresenta uma lista com a situação dos animais, e o
Ibama acompanha”, afirma José Alfredo.
Francisco Gil poderá ser incluído na
“lista suja” do trabalho escravo
– registro mantido pelo MTE com empregadores que já usaram mão-de-obra
em condições de escravidão contemporânea. A criação de gado bovino é o
segmento econômico mais recorrente no cadastro de nomes “sujos”, 158 de
um total de 391 entradas
|
Trabalhador mostra recipiente com água que ele e colegas eram obrigados a beber |
*com a colaboração de Bianca Pyl