Cadastro de empregadores flagrados com escravos atinge número recorde e reflete impacto indesejado do avanço da monocultura e de grandes projetos
Por Bianca Pyl, Daniel Santini e Maurício Hashizume
A "lista suja" do trabalho escravo, cadastro de empregadores pegos em flagrante na exploração de trabalhadores em condições análogas à escravidão, nunca teve tantos nomes. Atualizada nesta semana, a relação cresceu com a entrada de 52 novos registros e chegou ao recorde de 294 nomes. Entre os que entraram estão alguns dos principais grupos usineiros do país, madeireiras, empresários e até uma empreiteira envolvida na construção da usina hidrelétrica de Jirau. A lista inclui ainda médicos, políticos, famílias poderosas e casos de exploração de trabalho infantil e de trabalho escravo urbano, que será tema de reportagem especial da Repórter Brasil nos próximos dias.
Rãs nadam em a água que era consumida pelos empregados libertados. Leia mais (Foto: SRTE/MA) |
Divisão por estado dos incluídos no cadastro |
1. Pará (PA)...................9 |
Após serem flagrados explorando mão-de-obra escrava, todas as pessoas e empresas tiveram chance de defesa em processos administrativos. Somente depois de esgotados todos os recursos, foram incluídas no cadastro. Entre os novos registros, há casos como o de Lidenor de Freitas Façanha Júnior, cujos trabalhadores, sem opções, bebiam água infestada com rãs, e o do fazendeiro Wilson Zemann, que explorava crianças e adolescentes no cultivo de fumo.
Entre os estados com mais inclusões nesta atualização estão novamente o Pará e o Mato Grosso, com nove e nove nomes inseridos, respectivamente. A incidência do problema no chamado arco do desmatamento demonstra que a utilização de trabalho escravo na derrubada da mata para a expansão de empreendimentos agropecuários segue presente.
A inclusão na "lista suja" limita o acesso a crédito em instituições públicas e privadas, e também dificulta negociações comerciais. As empresa signatárias do Pacto Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, dentre as quais estão alguns dos principais grupos empresariais do país, assumiram o compromisso de não comprar mais de fornecedores cujos nomes estejam no cadastro.
Os empregadores permanecem na lista por pelo menos dois anos, período no qual serão monitorados. Após este prazo, somente aqueles que sanarem as irregularidades, quitarem as multas e não reincidirem na exploração de escravos serão excluídos. Nesta atualização, apenas dois nomes foram retirados do cadastro (Dirceu Bottega e Francisco Antélius Sérvulo Vaz), o que pesou para que a relação chegasse a quase 300 registros.
Crianças e adolescentes trabalhavam de chinelos e até descalços na colheita de fumo (SRTE/SC) |
Escravos da cana
Entre os destaques da atualização estão libertações que chamam a atenção pelo grande número de escravos resgatados em plantações de cana-de-açúcar. Só na Usina Santa Clotilde S/A, uma das principais de Alagoas, foram flagrados 401 trabalhadores em situação degradante em 2008. Este não é o único caso de falta de condições de trabalho adequadas em frentes de trabalho organizadas para o corte em latifúndios especializados em monocultivo.
Também entra nesta atualização a Usina Paineiras, que utilizou 81 escravos em Itabapoana (RJ) em 2009. Um ano após o flagrante que resultou nesta inclusão, a empresa comprou a produção da Erbas Agropecuária, onde foram flagrados 95 trabalhadores escravizados. Em seu site, a usina afirma ter preocupação com os empregados e faz propaganda do seu "Plano de Assistência Social".
Mesmo com o aumento da preocupação social por parte das usinas, real ou apenas declarado, o setor ainda emprega mão-de-obra escrava. Recentemente, foram encontrados escravos até mesmo em colheitas mecanizadas de cana.
Além das usinas, outras empresas incluídas nesta atualização também têm o costume de apregoar ações sociais na internet. É o caso da Miguel Forte Indústria S/A, flagrada explorando 35 trabalhadores, incluindo três adolescentes, na colheita de erva-mate em Bituruna (PR). A madeireira, que mantinha o grupo em barracões de lona sob comando de "capatazes", anuncia na sua página que "o apoio a projetos sociais que promovem a cidadania e o bem-estar, principalmente entre a população carente, mostra o comprometimento da Miguel Forte com os ideais de uma sociedade mais justa e humana". À frente da empresa, Rui Gerson Brandt, acumula o cargo de presidente do Sindicato das Indústrias de Papel e Celulose do Paraná (Sindpacel).
Hidrelétrica de Jirau
Não é só na monocultura ou no campo que os flagrantes acontecem. As condições degradantes em projetos bilionários do país têm sido uma constante e, nesta atualização, uma das empreiteiras envolvidas na construção de uma hidrelétrica também entrou na lista. A Construtora BS, contratada pelo consórcio Energia Sustentável do Brasil (Enersus), foi flagrada utilizando 38 escravos na construção da Usina Hidrelétrica de Jirau.
Além de enfrentarem problemas relacionados aos alojamentos, segurança no trabalho e saúde, os empregados ainda eram submetidos a escravidão por dívida, por vezes em esquemas sofisticados que envolvem até a cobrança por meio de boletos bancários, conforme denunciado pela Repórter Brasil.
Boleto bancário utilizado em esquema de escravidão por dívidas no Rio Madeira (Foto: Bianca Pyl |
O isolamento, aliás, continua sendo utilizado como ferramenta para escravizar pessoas. Nesta atualização da lista, foi incluído Ernoel Rodrigues Junior, cujos trabalhadores estavam em um local de tão difícil acesso que foi necessário um helicóptero para o resgate dos trabalhadores.
Entre os libertados estavam dois adolescentes de 15 e 17 anos e uma de 16 anos. Para chegar no local em que o grupo estava, foi necessário percorrer a partir de São Félix do Xingu (PA) por 14 horas um caminho que contava com uma ponte de madeira submersa, balsa e estradas de terra em condições tão ruins que foi necessário o uso de tratores para desatolar alguns dos veículos. De acordo com os relatos colhidos pela fiscalização, todos tinham medo de reclamar porque o fazendeiro e o segurança da propriedade andavam armados. Para que conseguisse fazer a denúncia, um trabalhador explorado conseguiu fugir e teve de caminhar durante seis dias pela mata e por estradas de terra.
Família Peralta
Outro destaque na atualização da "lista suja" neste ano é a inclusão de Fernando Jorge Peralta pela exploração de escravos na Fazenda Peralta, em Rondolândia (MT). O Grupo Peralta é um conglomerado empresarial poderoso, do qual fazem parte a rede de supermercados Paulistão, a Brasterra Empreendimentos Imobiliários, as concessionárias Estoril Renault/Nissan (em Santos, Guarujá e Praia Grande), os shoppings Litoral Plaza Shopping e Mauá Plaza Shopping (cuja construção, na época, envolveu uma denúncia de propina), a Transportadora Peralta (Transper) e a PRO-PER Publicidade e Propaganda, só para citar os principais ramos de atividade do grupo.
Os Peralta começaram os negócios na década de 1950 em Cubatão (SP). Em 2006, o escravagista Fernando Jorge foi um dos homenageados pela Câmara de Cubatão na comemoração dos 50 anos da família no Brasil. O flagrante que levou Fernando Jorge à "lista suja" aconteceu em 2010 e envolveu a libertação de 11 trabalhadores de sua fazenda.
Inclusões e Exclusões da "Lista Suja" do Trabalho Escravo |
Entraram em 31/12/2011 |
Agro Pastoril Novo Horizonte S/A 78.231.701/0009-86 |
Saíram em 31/12/2011 |
Dirceu Bottega 159.095.909-44 |
Os integrantes da família Peralta não são os únicos que receberam homenagens após denúncias de uso de escravos. Luiz Carlos Brioschi e Osmar Brioschi, que também entram na lista nesta atualização, foram flagrados se aproveitando de 39 trabalhadores na colheita do café em Marechal Floriano (ES). Eles mantinham os empregados em regime de escravidão por dívidas e em condições extremamente precárias de trabalho e vida. Dois dias após a libertação ter sido divulgada, Osmar Brioschi esteve entre os homenageados com placas e diplomas na Assembleia Legislativa do Espírito Santo pelo "trabalho realizado em favor do campo capixaba", por iniciativa do deputado Atayde Armani (DEM-ES).
Devastação ambientalOutro aspecto reforçado pela atualização da lista é o elo entre escravidão e devastação ambiental. O uso de escravos em grandes projetos de desmatamento e em áreas com conflitos agrícolas é bastante comum. Desta vez, foi incluído na relação Tarcio Juliano de Souza, apontado como responsável pela destruição de milhares de hectares de floresta amazônica nos últimos anos.
Desmatamento avança ao longo dos rios e em pontos isolados em Lábrea (AM), onde o fazendeiro Tarcio Juliano de Souza atuava organizando frentes para derrubada da mata e abertura de pastos |
Ele é considerado pela Polícia Federal (PF) responsável por montar um esquema para desmatar cerca de 5 mil hectares de floresta nativa na região de Lábrea (AM), onde mantém a Fazenda Alto da Serra. Ele já chegou a ser preso em Rio Branco (AC) pelos crimes de redução de pessoas a condições análogas à escravidão, aliciamento de trabalhadores e destruição de Áreas de Preservação Permanente (APPs) e foi denunciado por tentar comprar um fiscal. Na época, o superintendente regional do trabalho Dermilson Chagas declarou que Tárcio estava à frente de um "consórcio de fazendeiros" do Acre formado para transformar grandes áreas de Lábrea (AM) em pastos, com a utilização criminosa de escravos para o desmate, para criar gado bovino.
Também consta na inclusão a empresa Manoel Marchetti Indústria e Comércio Ltda, pelo uso de 15 escravos em Porto Velho (RO). Trata-se de um grupo empresarial que, no começo da década de 2000, no comando da Fazenda Ipê, em José Boiteux (SC), envolveu-se em disputa por terras com uma comunidade indígena da reserva Duque de Caxias. Na ocasião, a Funai acusou exageros por parte da Polícia Militar na expulsão dos índios do território em disputa. Mesmo após o flagrante de trabalho escravo em Porto Velho e o histórico de conflito com índios em Santa Catarina, o Senado aprovou, em novembro de 2010, outorga para a a Associação Recreativa e Esportiva Grupo Manoel Marchetti para uma rádio comunitária por dez anos em Ibirama (SC), com voto favorável do senador Flávio Arns (PSDB-PR).
Doutores em escravidãoUm ex-prefeito, um ex-secretário municipal do Meio Ambiente e dois médicos estão entre os que entraram na relação nesta atualização. O ex-prefeito Edmar Koller Heller foi flagrado em 2010 explorando mão-de-obra escrava em um garimpo na Fazenda Beira Rio, que fica em Novo Mundo (MT), a 800 km da capital mato-grossense Cuiabá (MT), próximo à divisa com o Pará. Edmar foi prefeito de Peixoto de Azevedo (MT) em 2000, pelo extinto PFL (hoje DEM). Teve seu mandato cassado após ser acusado de desvio de recursos públicos, contratação de pessoal especializado sem licitação e contratação ilegal de veículos automotores de auxiliares de confiança.
Em 2007, ele se envolveu em outro escândalo político e chegou a ser preso. Como secretário de Administração da prefeita Cleuseli Missassi Heller, sua esposa, ele foi considerado responsável por improbidade administrativa, configurada pelo favorecimento de uma única empresa em processos licitatórios do município. Em 2009, a Terceira Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Mato Grosso manteve a condenação.
Atualizações anteriores |
Confira o histórico completo da "lista suja"* |
Setembro de 2005 - Lista suja de empregadores aos olhos de todos |
clique na data para ler a notícia |
* desde a criação do sistema de consultas da Repórter Brasil |
Outro político que passa a fazer parte da lista é Evanildo Nascimento Souza, flagrado com escravos quando ainda era secretário de Meio Ambiente de Goianésia do Pará (PA). O homem que deveria zelar pela natureza foi flagrado explorando escravos justamente no corte e queima de madeira para produção de carvão. De acordo com o Ministério Público do Trabalho (MPT), foram encontrados na Fazenda RDM (onde se localiza a Carvoaria da Mata), em julho de 2009, nove trabalhadores laborando em condições degradantes no corte de madeira, transporte, empilhamento, enchimento dos fornos, vedação do forno com barro e carbonização.
Os trabalhadores não possuíam equipamentos de proteção individual (EPIs) e estavam alojados em um barraco em péssimas condições, sujo com detritos, restos de maquinário e peças de veículos, armazenamento de combustível, sem separação para homens e mulheres, nem ventilação e iluminação.
Os médicos incluídos na relação são José Palmiro Da Silva Filho, CRM 830, flagrado com cinco escravos na Fazenda São Clemente, em Cáceres (MT), e Ovídio Octávio Pamplona Lobato, CRM 3236, flagrado com 30 escravos na Fazenda Tartarugas, em Soure (PA). O primeiro assinou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) acertado com o procurador do trabalho Roberto Portela Mildner, pelo qual se comprometeu a doar R$ 20 mil para o Hospital Bom Samaritano de Cáceres. Em caso de reincidência, o acordo prevê multa de R$ 10 mil por escravo encontrado.
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