sábado, 25 de abril de 2009

Brasil - Invasão ou ocupação de terras? Quem é o vilão nesta história

Brasil - Invasão ou ocupação de terras? Quem é o vilão nesta história
Delze dos Santos Laureano *
Adital -
Às vezes dá até preguiça de ficar explicando todo dia o óbvio. Mas, é recorrente o mesmo fato. Toda vez que noticiamos a ocupação de terras rurais ou urbanas por famílias empobrecidas, o senso comum fala mais alto. Usualmente vamos ouvir de muitos dos nossos interlocutores: "Não sou contra a distribuição de terra e casa para quem precisa, mas tem muito oportunista no meio desta gente que só quer tirar proveito e vender depois a terra que ganhou do governo!" Outras vezes ouvimos: "Não podemos admitir o uso da violência pelos sem-terra ou sem-teto. Por que eles não fazem como eu que trabalhei muito para ter a minha casa!" Podemos ouvir ainda: "O que sou contra é a invasão de terra que tem dono, a propriedade tem de ser respeitada. Precisamos de segurança jurídica!"
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Desde já posso garantir que todas essas afirmações são falsas. Vemos que a falta de informação acaba levando as pessoas, mesmo trabalhadoras, a repetirem o discurso das elites, capitaneado pela mídia subserviente desses interesses. Para provar o que afirmo vou começar bem do começo. Primeiro, toda grande propriedade no Brasil é injusta. Desafio alguém que consiga me provar que qualquer latifúndio existente no Brasil tenha sido comprado com dinheiro ganho honestamente. Todas as grandes propriedades, rurais e urbanas, resultaram de vantagens obtidas junto ao poder do Estado, com a grilagem de terras ou é fruto de herança, algo que perpetua a desigualdade entre as pessoas. Podemos citar, por exemplo, as grandes áreas adquiridas durante o regime das sesmarias. Enquanto em Portugal o donatário tinha de prestar contas do que produzia na pequena extensão de terra que recebia, no Brasil a doação de terras virou motivo de escândalos.
Em 1850, já no Segundo Império, ao ser promulgada a primeira Lei de Terras - Lei 601/1850, a obrigação legal imposta a todos os donatários foi a de que medissem as suas terras e fizessem o registro nas Paróquias respectivas. Muitos donatários não o fizeram, portanto caíram em comisso, ou seja, as terras que possuíam, ou as que passaram a seus herdeiros, perderam a legitimidade inicial e são devolutas. São terras públicas pertencentes à União federal ou aos Estados membros, por força do que dispõe a Constituição de 1988 nos artigos 20, II, e 26, IV. Essas terras destinam-se prioritariamente à Política Agrícola e de Reforma Agrária. No Estado de Minas Gerais, a titulação das terras devolutas em nome do atual possuidor é limitada a 250 hectares na zona rural, e em 500 metros quadrados na zona urbana. Em nível federal o limite é de 100 hectares, conforme dispõe Lei 6383/76. Infelizmente, agora, o presidente Lula assinou a Medida Provisória 458/09, que permite a legalização/titulação das terras griladas na Amazônia. Os primeiros 1500 hectares podem ocorrer de forma gratuita, outros 1.500 hectares podem ser adquiridos por meio de licitação. Como vemos, ao invés de avanços, retrocede a legislação agrária no país, o que apenas torna mais injusta ainda a nossa Política Agrária.
Mas, vamos imaginar que o donatário, tendo recebido um imenso latifúndio tenha medido a terra e realizado o registro. Toda essa extensão de terra, desde a confirmação da sesmaria deveria estar cultivada ou aplicada a alguma atividade agrária e cumprindo a função social, simultaneamente nos aspectos econômicos, ambientais e sociais. Tudo conforme já previa o Estatuto da Terra em 1964 e agora nos moldes estipulados pelo Art. 186 da Constituição de 1988. Caso contrário, devem ser desapropriadas para fins de reforma agrária.
Não podemos nos esquecer que a maioria dos grandes proprietários ocultaram por muito tempo a real extensão de suas terras para não pagar o valor devido do ITR - Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural -, previsto na Constituição como um imposto progressivo, Art. 153, de modo a desestimular a manutenção de propriedades improdutivas. Como a bancada ruralista existente no Congresso Nacional tem um peso muito grande nas decisões, não há efetivamente a valorização deste comando constitucional. O valor arrecadado com o ITR no país inteiro é insignificante. A reforma agrária, que deveria ser financiada com essa arrecadação, conforme a destinação prevista no Estatuto da Terra, continua sistematicamente adiada.
Os índices de produtividade utilizados pelo INCRA - Instituto Nacional de Reforma Agrária - para a avaliação do cumprimento da função social do imóvel rural, sob o aspecto econômico, são ainda os de 1975, permitindo a manutenção das atividades do agronegócio de baixa produtividade, inclusive da pecuária extensiva, que é a atividade agrária mais atrasada no Brasil. Some-se que os aspectos sociais, como a existência de trabalho escravo, a degradação do meio ambiente e os conflitos pela posse da terra são sistematicamente ignorados pelo Poder Judiciário ao julgar o aspecto do cumprimento da função social, restando somente o critério da produtividade.
É bom refrescar na memória também a doação de extensas áreas de terras rurais às empresas nas décadas de 1960 a 1980. O discurso dos militares assentava-se no desenvolvimentismo para contrapor à reforma agrária. Frases como "Exportar é o que importa!" e "Plante que o João garante!" justificaram as doações de terras para empresas. Essas se beneficiavam da renúncia fiscal para "desenvolver" o campo. Em 1988 o legislador constituinte entendeu necessário fazer uma revisão de todas essas doações. O dispositivo inscrito no Art. 51 da ADCT - Atos das Disposições Constitucionais Transitórias - nunca foi cumprido pelo Congresso Nacional, restando mais essa dívida moral para com a sociedade brasileira. Todos os estudos realizados dão conta de ter ocorrido desde essa época o maior êxodo rural do mundo, expulsando do meio rural mais de 40% da população brasileira em pouco mais de uma década. A propriedade da terra tornou-se ainda mais concentrada, enquanto uma massa de trabalhadores passou a disputar um posto de trabalho na cidade. Porém as oportunidades de emprego tornaram-se cada vez mais escassas, principalmente para a mão-de-obra excedente do campo, despreparada para o trabalho na indústria e nos serviços urbanos.
Não posso deixar de mencionar ainda as artimanhas utilizadas para a tão conhecida grilagem de terras. Como os antigos registros basearam-se nas medidas calculadas "no olho" por pessoas que tinham experiência nesse trabalho, por vezes havia pequenos ajustes a serem feitos, posteriormente, nos registros dos imóveis. Todavia, as retificações das áreas, na maioria das vezes, são indícios claros de legalização de terras solapadas dos antigos possuidores, normalmente pessoas pobres que foram constrangidas/violentadas para abandonarem suas terras por não possuírem o título de domínio. Muitas vezes são terras devolutas, que devido à inércia dos governos, desde 1850, nunca foram discriminadas, permanecendo na posse de grandes empreendedores, como são as empresas eucaliptadoras em Minas Gerais. Considerando que os cartórios são negócios privados no Brasil, portanto controlados pelos donos do poder, muitos documentos foram forjados e não resistem a um levantamento idôneo da cadeia dominial do imóvel.
Finalmente, cabe falar do problema dos imóveis urbanos. A especulação imobiliária urbana é conhecida de norte a sul, de leste a oeste do Brasil. Todos sabem que terra não tem um valor intrínseco, senão as obras e o trabalho realizados sobre a sua superfície ou o serviço que pode ser vendido em razão do seu direito de uso. Muitos proprietários urbanos ganham dinheiro beneficiando-se dos melhoramentos públicos realizados na região. Assim, detêm uma área de terra, não porque precisam ou porque efetivamente podem dar uma função social ao imóvel, mas esperando a sua valorização. Só que essa valorização ocorre em razão da aplicação dos recursos de toda a sociedade e que, portanto, deveriam ser revertidos em benefício de toda a sociedade. Mecanismo para isso existe na lei, como, por exemplo, a cobrança do IPTU progressivo, expressamente previsto na Constituição federal, ou a contribuição de melhoria em razão de obra que supervalorize o imóvel. Porém, como a propriedade é vista como direito absoluto, intocável, ela é sempre protegida pelos titulares do poder, ainda que contra a dignidade da pessoa humana. Basta ver a quantidade de pessoas que reivindicam um pedaço de chão para morar ou para trabalhar, enquanto são mantidos os privilégios de uma minoria proprietária que descumpre o preceito fundamento da função social do imóvel. Por tudo isso, só resta indagar: será que é defensável em um país com área de 850 milhões de hectares de terra existirem pessoas sem lugar para morar?
Juridicamente, o direito à propriedade é um direito real oponível erga omnes. Trocando em miúdos, é um direito que ocorre entre um sujeito, aquele que é o titular do domínio, em face de todos os outros integrantes daquela sociedade, que devem respeitar esse direito. Entretanto, para este sujeito dono é exigido o cumprimento da função social. Essa é a condição sine qua non para que todos os demais, não proprietários, respeitem o seu direito de propriedade. Descumprindo a função social, perde o proprietário o critério objetivo inerente à propriedade que é o direito de posse. Portanto, um imóvel que não cumpre a função social está vazio. Ninguém tem a sua posse, como consequência lógica não pode o Poder Judiciário, baseado somente no registro, dar as garantias da ação possessória. A propriedade, aspecto subjetivo, somente garante ao detentor do título de domínio, o direito à indenização, nos termos do Art. 5º, XXIV da Constituição. Portanto, errado falar que houve invasão do imóvel pelos atuais ocupantes. Quem é o invasor é aquele que se diz proprietário sem legitimidade.
Mesmo tendo dito o óbvio, acredito que valha a pena, de vez em quando, refrescar a memória dos mais desinformados acerca da legitimidade das ações dos que lutam de forma organizada pelo direito à moradia, pela reforma agrária, pelo direito de ter trabalho e renda. Todos os direitos sociais são tão protegidos pelas leis brasileiras quanto o direito à propriedade. Ressalvado apenas que o direito à propriedade sofre a restrição fundamental da exigência do cumprimento da função social, conforme explicado acima. Melhor pensar como os anarquistas: "Toda propriedade privada é um roubo!" Toda especulação imobiliária deve ser considerada um roubo e não merece proteção jurídica.
Para concluir, entendemos que os direitos individuais, como o direito de propriedade, que são os direitos de liberdade, só podem ser invocados se considerarmos na mesma medida o direito de igualdade. Nesta esteira é que proponho: antes de defendermos os direitos dos proprietários temos o dever de defender os direitos da maioria da população que vive condenada a uma desigualdade gritante. Um processo de exclusão mesmo, em um país tão rico como o Brasil. Se depender da boa vontade dos políticos de plantão nada será feito senão as migalhas assistencialistas. As mudanças estruturais só vão ocorrer com a luta do povo organizado.
Essa a nossa bandeira ao apoiar os movimentos sociais que contribuem na construção da via democrática popular no Brasil.
Belo Horizonte, 24/04/2009.

Brasil - Invasão ou ocupação de terras? Quem é o vilão nesta história

Brasil - Invasão ou ocupação de terras? Quem é o vilão nesta história

Delze dos Santos Laureano *
Adital -
Às vezes dá até preguiça de ficar explicando todo dia o óbvio. Mas, é recorrente o mesmo fato. Toda vez que noticiamos a ocupação de terras rurais ou urbanas por famílias empobrecidas, o senso comum fala mais alto. Usualmente vamos ouvir de muitos dos nossos interlocutores: "Não sou contra a distribuição de terra e casa para quem precisa, mas tem muito oportunista no meio desta gente que só quer tirar proveito e vender depois a terra que ganhou do governo!" Outras vezes ouvimos: "Não podemos admitir o uso da violência pelos sem-terra ou sem-teto. Por que eles não fazem como eu que trabalhei muito para ter a minha casa!" Podemos ouvir ainda: "O que sou contra é a invasão de terra que tem dono, a propriedade tem de ser respeitada. Precisamos de segurança jurídica!"
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Desde já posso garantir que todas essas afirmações são falsas. Vemos que a falta de informação acaba levando as pessoas, mesmo trabalhadoras, a repetirem o discurso das elites, capitaneado pela mídia subserviente desses interesses. Para provar o que afirmo vou começar bem do começo. Primeiro, toda grande propriedade no Brasil é injusta. Desafio alguém que consiga me provar que qualquer latifúndio existente no Brasil tenha sido comprado com dinheiro ganho honestamente. Todas as grandes propriedades, rurais e urbanas, resultaram de vantagens obtidas junto ao poder do Estado, com a grilagem de terras ou é fruto de herança, algo que perpetua a desigualdade entre as pessoas. Podemos citar, por exemplo, as grandes áreas adquiridas durante o regime das sesmarias. Enquanto em Portugal o donatário tinha de prestar contas do que produzia na pequena extensão de terra que recebia, no Brasil a doação de terras virou motivo de escândalos.
Em 1850, já no Segundo Império, ao ser promulgada a primeira Lei de Terras - Lei 601/1850, a obrigação legal imposta a todos os donatários foi a de que medissem as suas terras e fizessem o registro nas Paróquias respectivas. Muitos donatários não o fizeram, portanto caíram em comisso, ou seja, as terras que possuíam, ou as que passaram a seus herdeiros, perderam a legitimidade inicial e são devolutas. São terras públicas pertencentes à União federal ou aos Estados membros, por força do que dispõe a Constituição de 1988 nos artigos 20, II, e 26, IV. Essas terras destinam-se prioritariamente à Política Agrícola e de Reforma Agrária. No Estado de Minas Gerais, a titulação das terras devolutas em nome do atual possuidor é limitada a 250 hectares na zona rural, e em 500 metros quadrados na zona urbana. Em nível federal o limite é de 100 hectares, conforme dispõe Lei 6383/76. Infelizmente, agora, o presidente Lula assinou a Medida Provisória 458/09, que permite a legalização/titulação das terras griladas na Amazônia. Os primeiros 1500 hectares podem ocorrer de forma gratuita, outros 1.500 hectares podem ser adquiridos por meio de licitação. Como vemos, ao invés de avanços, retrocede a legislação agrária no país, o que apenas torna mais injusta ainda a nossa Política Agrária.
Mas, vamos imaginar que o donatário, tendo recebido um imenso latifúndio tenha medido a terra e realizado o registro. Toda essa extensão de terra, desde a confirmação da sesmaria deveria estar cultivada ou aplicada a alguma atividade agrária e cumprindo a função social, simultaneamente nos aspectos econômicos, ambientais e sociais. Tudo conforme já previa o Estatuto da Terra em 1964 e agora nos moldes estipulados pelo Art. 186 da Constituição de 1988. Caso contrário, devem ser desapropriadas para fins de reforma agrária.
Não podemos nos esquecer que a maioria dos grandes proprietários ocultaram por muito tempo a real extensão de suas terras para não pagar o valor devido do ITR - Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural -, previsto na Constituição como um imposto progressivo, Art. 153, de modo a desestimular a manutenção de propriedades improdutivas. Como a bancada ruralista existente no Congresso Nacional tem um peso muito grande nas decisões, não há efetivamente a valorização deste comando constitucional. O valor arrecadado com o ITR no país inteiro é insignificante. A reforma agrária, que deveria ser financiada com essa arrecadação, conforme a destinação prevista no Estatuto da Terra, continua sistematicamente adiada.
Os índices de produtividade utilizados pelo INCRA - Instituto Nacional de Reforma Agrária - para a avaliação do cumprimento da função social do imóvel rural, sob o aspecto econômico, são ainda os de 1975, permitindo a manutenção das atividades do agronegócio de baixa produtividade, inclusive da pecuária extensiva, que é a atividade agrária mais atrasada no Brasil. Some-se que os aspectos sociais, como a existência de trabalho escravo, a degradação do meio ambiente e os conflitos pela posse da terra são sistematicamente ignorados pelo Poder Judiciário ao julgar o aspecto do cumprimento da função social, restando somente o critério da produtividade.
É bom refrescar na memória também a doação de extensas áreas de terras rurais às empresas nas décadas de 1960 a 1980. O discurso dos militares assentava-se no desenvolvimentismo para contrapor à reforma agrária. Frases como "Exportar é o que importa!" e "Plante que o João garante!" justificaram as doações de terras para empresas. Essas se beneficiavam da renúncia fiscal para "desenvolver" o campo. Em 1988 o legislador constituinte entendeu necessário fazer uma revisão de todas essas doações. O dispositivo inscrito no Art. 51 da ADCT - Atos das Disposições Constitucionais Transitórias - nunca foi cumprido pelo Congresso Nacional, restando mais essa dívida moral para com a sociedade brasileira. Todos os estudos realizados dão conta de ter ocorrido desde essa época o maior êxodo rural do mundo, expulsando do meio rural mais de 40% da população brasileira em pouco mais de uma década. A propriedade da terra tornou-se ainda mais concentrada, enquanto uma massa de trabalhadores passou a disputar um posto de trabalho na cidade. Porém as oportunidades de emprego tornaram-se cada vez mais escassas, principalmente para a mão-de-obra excedente do campo, despreparada para o trabalho na indústria e nos serviços urbanos.
Não posso deixar de mencionar ainda as artimanhas utilizadas para a tão conhecida grilagem de terras. Como os antigos registros basearam-se nas medidas calculadas "no olho" por pessoas que tinham experiência nesse trabalho, por vezes havia pequenos ajustes a serem feitos, posteriormente, nos registros dos imóveis. Todavia, as retificações das áreas, na maioria das vezes, são indícios claros de legalização de terras solapadas dos antigos possuidores, normalmente pessoas pobres que foram constrangidas/violentadas para abandonarem suas terras por não possuírem o título de domínio. Muitas vezes são terras devolutas, que devido à inércia dos governos, desde 1850, nunca foram discriminadas, permanecendo na posse de grandes empreendedores, como são as empresas eucaliptadoras em Minas Gerais. Considerando que os cartórios são negócios privados no Brasil, portanto controlados pelos donos do poder, muitos documentos foram forjados e não resistem a um levantamento idôneo da cadeia dominial do imóvel.
Finalmente, cabe falar do problema dos imóveis urbanos. A especulação imobiliária urbana é conhecida de norte a sul, de leste a oeste do Brasil. Todos sabem que terra não tem um valor intrínseco, senão as obras e o trabalho realizados sobre a sua superfície ou o serviço que pode ser vendido em razão do seu direito de uso. Muitos proprietários urbanos ganham dinheiro beneficiando-se dos melhoramentos públicos realizados na região. Assim, detêm uma área de terra, não porque precisam ou porque efetivamente podem dar uma função social ao imóvel, mas esperando a sua valorização. Só que essa valorização ocorre em razão da aplicação dos recursos de toda a sociedade e que, portanto, deveriam ser revertidos em benefício de toda a sociedade. Mecanismo para isso existe na lei, como, por exemplo, a cobrança do IPTU progressivo, expressamente previsto na Constituição federal, ou a contribuição de melhoria em razão de obra que supervalorize o imóvel. Porém, como a propriedade é vista como direito absoluto, intocável, ela é sempre protegida pelos titulares do poder, ainda que contra a dignidade da pessoa humana. Basta ver a quantidade de pessoas que reivindicam um pedaço de chão para morar ou para trabalhar, enquanto são mantidos os privilégios de uma minoria proprietária que descumpre o preceito fundamento da função social do imóvel. Por tudo isso, só resta indagar: será que é defensável em um país com área de 850 milhões de hectares de terra existirem pessoas sem lugar para morar?
Juridicamente, o direito à propriedade é um direito real oponível erga omnes. Trocando em miúdos, é um direito que ocorre entre um sujeito, aquele que é o titular do domínio, em face de todos os outros integrantes daquela sociedade, que devem respeitar esse direito. Entretanto, para este sujeito dono é exigido o cumprimento da função social. Essa é a condição sine qua non para que todos os demais, não proprietários, respeitem o seu direito de propriedade. Descumprindo a função social, perde o proprietário o critério objetivo inerente à propriedade que é o direito de posse. Portanto, um imóvel que não cumpre a função social está vazio. Ninguém tem a sua posse, como consequência lógica não pode o Poder Judiciário, baseado somente no registro, dar as garantias da ação possessória. A propriedade, aspecto subjetivo, somente garante ao detentor do título de domínio, o direito à indenização, nos termos do Art. 5º, XXIV da Constituição. Portanto, errado falar que houve invasão do imóvel pelos atuais ocupantes. Quem é o invasor é aquele que se diz proprietário sem legitimidade.
Mesmo tendo dito o óbvio, acredito que valha a pena, de vez em quando, refrescar a memória dos mais desinformados acerca da legitimidade das ações dos que lutam de forma organizada pelo direito à moradia, pela reforma agrária, pelo direito de ter trabalho e renda. Todos os direitos sociais são tão protegidos pelas leis brasileiras quanto o direito à propriedade. Ressalvado apenas que o direito à propriedade sofre a restrição fundamental da exigência do cumprimento da função social, conforme explicado acima. Melhor pensar como os anarquistas: "Toda propriedade privada é um roubo!" Toda especulação imobiliária deve ser considerada um roubo e não merece proteção jurídica.
Para concluir, entendemos que os direitos individuais, como o direito de propriedade, que são os direitos de liberdade, só podem ser invocados se considerarmos na mesma medida o direito de igualdade. Nesta esteira é que proponho: antes de defendermos os direitos dos proprietários temos o dever de defender os direitos da maioria da população que vive condenada a uma desigualdade gritante. Um processo de exclusão mesmo, em um país tão rico como o Brasil. Se depender da boa vontade dos políticos de plantão nada será feito senão as migalhas assistencialistas. As mudanças estruturais só vão ocorrer com a luta do povo organizado.
Essa a nossa bandeira ao apoiar os movimentos sociais que contribuem na construção da via democrática popular no Brasil.
Belo Horizonte, 24/04/2009.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Encontro de formação com a temâtica Gênero

Acontecerá no dia 24/04/2009 em Redenção, PI uma oficina com a temática Relações Sociais de Gênero.
A oficina tem como objetivo sensibilizar o grupo sobre a temática Relações Sociais de Gênero.

GÊNERO
A palavra “gênero” começa a ser utilizada nos anos 80 do século XX, pelas feministas americanas e inglesas, para explicar a desigualdade entre homens e mulheres concretizada em discriminação e opressão das mulheres. Nessa época, as investigações sobre a condição social das mulheres já apontavam uma forte desigualdade entre homens e mulheres, que tendia a aumentar conforme a classe social, raça, etnia e outras condições de vida. A desigualdade abarcava a esfera pública e privada. Na primeira, era visível nos salários menores do que o dos homens em serviços iguais e na pequena participação política. Na esfera privada, se evidenciava pela dupla moral sexual e na delegação de papéis domésticos.
A desigualdade era e ainda é justificada, por setores conservadores religiosos, científicos e políticos, pela diferença biológica entre homens e mulheres. Muitos crêem que as diferenças sociais são essenciais, naturais e inevitáveis.
O sexo é uma categoria biológica insuficiente para explicar os papéis sociais atribuídos ao homem e à mulher. “Gênero” veio como uma categoria de análise das ciências sociais para questionar a suposta essencialidade da diferença dos sexos, a idéia de que mulheres são passivas, emocionais e frágeis; homens são ativos, racionais e fortes. Na perspectiva de gênero, essas características são produto de uma situação histórico-cultural e política; as diferenças são produto de uma construção social. Portanto, não existe naturalmente o gênero masculino e feminino.Gênero é uma categoria relacional do feminino e do masculino. Considera as diferenças biológicas entre os sexos, reconhece a desigualdade, mas não admite como justificativa para a violência, para a exclusão e para a desigualdade de oportunidades no trabalho, na educação e na política. É um modo de pensar que viabiliza a mudança nas relações sociais e, por conseqüência, nas relações de poder. É um instrumento para entender as relações sociais e, particularmente, as relações sociais entre mulheres e homens.
Gênero tem a ver com feminismo, mas não é igual a mulher ou a feminismo. As relações de gênero podem ser estudadas a partir da identidade feminina e masculina. Gênero significa relações entre homens e mulheres. Uma análise de gênero pode se limitar a descrever essas relações. O feminismo vai além ao mostrar que essas relações são de poder e que produzem injustiça.
A expressão gênero vem, paulatinamente, se incorporando nos instrumentos normativos internacionais e na legislação dos países. No Brasil, foi introduzida na Convenção de Belém do Pará (Decreto n. 1.973, de 01/08/1996), para esclarecer o conceito de violência contra a mulher como qualquer ato ou conduta baseada no gênero. Não há definição de gênero, mas do contexto se infere o conceito de relação de poder. Aparece também no Estatuto de Roma (Decreto n. 4.388, de 25/09/2002), com um significado mais restrito.
O Tribunal Penal Internacional, criado pelo Estatuto de Roma, incorpora (a) uma definição de gênero, (b) o princípio da não-discriminação baseada em gênero, (c) normas de procedimento e prova, proteção e participação em relação a vítimas e testemunhas de crimes de violência sexual, e (d) criminaliza em nível internacional a violência sexual e de gênero.
O primeiro ponto notável é a introdução do conceito gênero em um instrumento legal internacional. De acordo com o art. 7º, item 3, “entende-se que o termo “gênero” abrange os sexos masculino e feminino, dentro do contexto da sociedade, não lhe devendo ser atribuído qualquer outro significado”. É uma redação fruto de negociação intensa com o Vaticano e os países islâmicos, que reduzem o gênero a uma questão biológica. A expressão “dentro do contexto da sociedade” dá-lhe a perspectiva cultural necessária, embora de forma imprecisa e insuficiente.
Com a criação, no Brasil, da Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres, em 2003, fortaleceu-se a perspectiva de gênero em todas as políticas públicas.O conceito de gênero segue em construção. A identidade sexual, antes dicotômica (masculino-feminino), ampliou-se para abranger homossexuais, lésbicas, transexuais, travestis etc., que não se identificam como homens ou mulheres. Hoje se sabe que o suposto sexo biológico e a identidade subjetiva nem sempre coincidem.
Uma das versões mais atuais do conceito de gênero, de Marta Lamas, alude a uma rede de inter-relações e interações sociais que se constroem a partir da divisão simbólica dos sexos. Lamas nega qualquer base biológica e mesmo cultural à noção de gênero. A seu ver, é uma lógica de pensamento, emoções e representação da subjetividade íntima das pessoas.